O Dinheiro como Valor Fundamental
Nildo Viana*
Na sociedade
capitalista, o dinheiro, para muitas pessoas, torna-se um valor fundamental. Todo
indivíduo possui uma escala de valores, alguns são mais importantes e por isso
constituem valores fundamentais (Viana, 2007). O dinheiro como valor
fundamental significa que está acima de outros valores (caso ele seja o único
valor fundamental, estará acima da saúde, amor, amizade, poder, desenvolvimento
de potencialidades, solidariedade, etc.). Os valores fundamentais dos
indivíduos, por sua vez, constituem motivações poderosas das ações individuais.
Os valores são mobilizadores e isso é ainda mais forte e verdadeiro no caso dos
valores fundamentais. Os valores, no entanto, são constituídos socialmente e,
por conseguinte, é preciso compreender a sociedade para compreender
determinados valores e como alguns deles se tornam dominantes na totalidade da
vida social ou fundamentais para determinados indivíduos. O nosso objetivo aqui
é analisar como o dinheiro pode ser supervalorado e se tornar, para algumas
pessoas, um valor fundamental e as consequências disto.
A sociedade
capitalista é uma “sociedade do dinheiro”. O dinheiro nasceu antes do
capitalismo, mas é graças ao modo de produção capitalista que se torna um
elemento fundamental da sociedade, tornando-se “meio de troca universal”, o “equivalente
geral” pelo qual toda e qualquer mercadoria pode ser trocada, como já dizia
Marx (1988). Desde as mercadorias mais necessárias, tal como os alimentos, até
as mais supérfluas, tais como enfeites de geladeira, todas são compradas por
intermédio do dinheiro. A mercantilização das relações sociais, produto do
desenvolvimento capitalista, se amplia e intensifica cada vez mais (Viana,
2008) e, no capitalismo neoliberal, sob o regime de acumulação integral, temos
um processo de hipermercantilização (Viana, 2009), no qual a mercantilização se
intensifica, principalmente da cultura e tecnologia, além de novas estratégias
para intensificar o consumo individual e criação de nichos de mercado.
Isso tende a
gerar o fetichismo do dinheiro. Ele parece adquirir vida própria, ter um
processo de desenvolvimento independente, gerar mais dinheiro (essa é a ilusão
da poupança e daqueles que acham que dinheiro gera dinheiro por si próprio). O
que muitos esquecem é que o dinheiro é um equivalente geral acaba valendo não
por seu valor de uso e nem pelo seu valor de troca (que é artificialmente criado,
pois uma nota de 100 reais possui o mesmo quantum
de trabalho socialmente necessário que uma nota de um real) e sim pela medida
de valor que ele expressa e este é trabalho materializado. Assim, não é apenas “fictício”,
como alguns pensam de forma ingênua, e sim bastante real, tanto é que com ele é
possível comprar uma fábrica e produzir mais-valor explorando operários. Assim,
dinheiro traz capacidade de consumo, de aquisição de bens (de consumo e de
produção), poder, etc.
A mentalidade
burguesa, reprodutora da sociabilidade capitalista – caracterizada pela
competição, burocratização e mercantilização (Viana, 2008) – acaba tornando o dinheiro um valor fundamental,
estando, inclusive, para algumas pessoas, acima da vida dos demais seres
humanos, tanto é que matam por ele. Obviamente que o dinheiro é uma necessidade
para quem vive no capitalismo, pois sem ele não poderá satisfazer suas
necessidades básicas (comer, habitar, etc.). Porém, a grande maioria da
população não se contenta com o dinheiro apenas para isso, ele tem o papel de
medir o grau de poder da pessoa, o seu status
social, etc. Ele está envolvido na competição social, que produz uma “personalidade
competidora” (Wright Mills, 1970) e onde o ter passa a ser mais importante do
que o ser (Fromm, 1987) e isso mostra a pobreza do ser, pois só vem valor por
ter. Isso, com a mercantilização das relações sociais, se espalha pela
sociedade, influenciando o conjunto das relações sociais, tal como demonstra
Alberoni no caso do erotismo feminino (Alberoni, 1988), que revela como de
forma não-consciente a atração sexual é determinada pelos valores dominantes.
Existem muitos
tipos de pessoas para as quais o dinheiro é um valor fundamental. O caso mais
visível e conhecido, bem como retratado pela literatura e outras formas de
arte, é o avarento. Desde Esopo, ainda na sociedade escravista antiga, essa
figura já aparecia. Ele mostra um elemento comum no avarento, que é guardar
para não gastar e assim valorar o que nunca irá usar, gerando um comportamento
irracional. Na obra de Esopo, o avarento enterra seu ouro e assim o mantém por
muito tempo. Depois ele é roubado. Um andarilho passa pelo local e ao ver seu
lamento busca entender o que ocorria e questiona o avarento, perguntando por
qual motivo não guardou em um lugar mais seguro, tal como sua casa, e o
avarento responde dizendo que jamais usaria o ouro. O andarilho joga uma pedra
no buraco e diz que então poderia ser substituído por ela. Aqui se tem um
processo no qual o ouro (ou o dinheiro) é tão valorado e passa a ser um valor
em si mesmo que perde até sua utilidade. O dinheiro vale por si mesmo e isso
mostra a maior irracionalidade possível, pois ao contrário de outros objetos, o
dinheiro (seja ouro ou papel moeda) não foi criado (ou usado) para ser um fim
em si mesmo e sim um meio, um meio de troca, que serve para adquirir outras
coisas. Se ele é guardado e não usado, então não exerce o seu único papel, pois
a não ser em casos de colecionadores que querem guardar o mesmo motivado por
outros valores, isso não tem o menor sentido, sendo algo irracional.
O AVARENTO
ESOPO
Um avarento tinha enterrado
seu pote de ouro num lugar secreto do seu jardim. E todos os dias, antes de
ir dormir, ele ia até o ponto, desenterrava o pote e contava cada moeda de
ouro para ver se estava tudo lá. Ele fez tantas viagens ao local que um
Ladrão, que já o observava há bastante tempo, curioso para saber o que o
Avarento estava escondendo, veio uma noite, e sorrateiramente desenterrou o
tesouro levando-o consigo.
Quando o Avarento descobriu
sua grande perda, foi tomado de aflição e desespero. Ele gemia e chorava
enquanto puxava seus cabelos.
Alguém que passava pelo
local, ao escutar seus lamentos, quis saber o que acontecera.
“Meu ouro! Todo meu ouro!”
chorava inconsolável o avarento, “alguém o roubou de mim!”
“Seu ouro! Ele estava nesse
buraco? Por que você o colocou aí? Por que não o deixou num lugar seguro,
como dentro de casa, onde poderia mais facilmente pegá-lo quando precisasse
comprar alguma coisa?”
“Comprar!” exclamou furioso
o Avarento. “Você não sabe o que diz! Ora, eu jamais usaria aquele ouro.
Nunca pensei de gastar dele uma peça sequer!”
Então, o estranho pegou uma
grande pedra e jogou dentro do buraco vazio.
“Se é esse o caso,” ele
disse, “enterre então essa pedra. Ela terá o mesmo valor que tinha para você
o tesouro que perdeu!”
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Na concepção
cristã medieval, a avareza é um dos sete pecados capitais. Mas é no capitalismo
que o número e a intensidade – bem como o despropósito – do avarento atingem o
seu grau máximo. Uma das mais conhecidas obras artísticas sobre avarentos é a
peça teatral de Molière, de 1668, encenada de inúmeras formas até os dias de
hoje. A mesma figura se encontra no filme O
Avarento (Jean Girault, França, 1980) ou as diversas versões
cinematográficas baseadas nos contos de natal de Charles Dickens, no qual o
personagem avarento Ebenezer Scrooge recebe a visita de três fantasmas que o
faz repensar sua vida de avareza. O avarento aparece também em outras
manifestações culturais, tal como as novelas de televisão. Este é o caso da
novela Amor com Amor se Paga, na qual
o personagem Nuno Correia nega até comida para seus familiares devido sua
avareza.
Nas revistas em
quadrinhos, o personagem avarento mais famoso é o Tio Patinhas. Ele foi
inspirado no personagem avarento de Dickens, e seu nome original era Scrooge
McDuck, referencia direta a ele e sua primeira aparição, em 1947, em “Natal nas
Montanhas” (“Christmas on Bear Mountain”).
A avarento é
apenas um indivíduo doentio que transforma o seu desejo por dinheiro e posse
material algo que pode ser sua razão de viver. A explicação disso ocorre
através da análise da história de vida do indivíduo avarento, tal como se pode
observar na história do personagem de Charles Dickens. Para sustentar sua
avareza, o avarento pode criar racionalizações, tais como o medo paranóico de “perder
tudo”.
Porém, o
dinheiro como valor fundamental não gera apenas avareza (que se manifesta sob
múltiplas formas e graus de intensidade, existem os muito avarentos e os
avarentos moderados, aqueles que são avarentos com todo mundo ou apenas com as
pessoas mais distantes, etc.). Na sociedade capitalista, há uma grande parte da
população que tem o dinheiro como valor fundamental sem ser exatamente um
avarento ou manifestando apenas algumas características deste e de forma
moderada. Um consumista, portanto, não avarento, pode ter o dinheiro como valor
fundamental, mas considerado mais como meio do que como objetivo. O avarento
toma o dinheiro como objetivo, tal como no conto de Esopo ou o de Dickens. Isso
difere da pessoa pobre que economiza e busca guardar suas economias, já que não
é o dinheiro em si que é o valor, mas o meio de realizar coisas no futuro ou
prevenir a perda e a situação de penúria (cuja possibilidade pode ou não ser
realista, mas isso é uma questão que não altera o quadro).
No caso do
dinheiro como valor fundamental, ela reforça a competição social e a “corrida
do ouro”, tema de filmes e novelas de TV. Desde o filme “Em Busca do Ouro”
(Charles Chaplin, EUA, 1925) até a novela Corrida
do Ouro, da Rede Globo, de 1974/1975, em época de ditadura militar, o tema
é recorrente na cultura capitalista.
CORRIDA DO OURO
CORAL SOM LIVRE
Muito
dinheiro fora de hora
Sempre
modifica as pessoas
Muito
dinheiro
Quando
chega ninguém espera
Modifica
todas as coisas
Muito dinheiro
Quando
pinta na vida
Modifica
tudo na vida
Mas
as pessoas vivem todas
Correndo
atrás
De
muito dinheiro
Muito dinheiro fora de hora
Dá
um revertério na cuca
Muito
dinheiro
Prá
quem não sabe
O
que é dinheiro
Põe
toda a moçada maluca
Muito
dinheiro no bolso
E
no banco
É
pior do que pouco dinheiro
Mas as pessoas vivem todas
Correndo
atrás
De
muito dinheiro
Quem corre atrás do tesouro
Da
mina de ouro
Tem
conta secreta
No
banco suíço
Se
esquece que a vida
Existe
só prá ser vivida
Quem
pensa que a grana
Que
pinta de graça
Resolve
os problemas
Do
amor e da vida
Perdeu
a sua chance
De
ter a tal felicidade
De
verdade
Muito dinheiro fora de hora
Sempre
modifica as pessoas
Muito
dinheiro
Quando chega ninguém espera
Modifica
todas as coisas
Muito
dinheiro
Quando
pinta na vida
Modifica
tudo na vida
Mas as pessoas vivem todas
Correndo
atrás
De
muito dinheiro
Essas pessoas
Correm
atrás do dinheiro
Todo
mundo correndo
Sempre
atrás do dinheiro
Essas pessoas vivem todas correndo
Atrás
de muito dinheiro
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A letra da
música acima aponta para uma percepção crítica da supervaloracao do dinheiro.
Afinal, “Muito dinheiro/Prá quem não sabe/O que é dinheiro /Põe toda
a moçada maluca”, ou seja, não saber o que é o dinheiro é não saber para o que
ele serve, um mero meio de troca. Daí que “Muito dinheiro no bolso /E no
banco/É pior do que pouco dinheiro”. A letra não só coloca a questão do saber
sobre o dinheiro, mas também a questão da valoração do mesmo. Ao afirmar que
quem “corre atrás do tesouro”, tem conta secreta, etc., se esqueceu de que a
vida é “prá ser vivida”, coloca uma oposição entre necrofilia e biofilia, a
morte e a vida, o mundo do dinheiro e o mundo real. A ilusão de que o dinheiro
pode resolver os problemas “do amor e da vida” expressa apenas que o iludido
“perdeu a sua chance/de ter a tal felicidade/de verdade”. A letra da música,
por conseguinte, coloca o dinheiro como um desvalor, ou seja, como algo sem
importância e de peso negativo (Viana, 2007).
A
sociedade capitalista tende a produzir indivíduos que supervaloram o dinheiro e
seu grau máximo de expressão é o avarento. Contudo, além e antes do avarento, a
valoração do dinheiro a ponto de transformá-lo num valor fundamental é algo
mais comum e profundo. Isso tem a ver com as necessidades impostas pelo
capitalismo, mas também com a cultura da sociedade capitalista e com o processo
social de formação dos valores. O dinheiro é um valor fundamental para muitas
pessoas não avarentas. A figura do avarento é apenas um exagero do que é
bastante comum na sociedade moderna e, ao mesmo tempo, um revelador da
irracionalidade presente num dos principais valores dominantes atuais.
O capitailsmo
contemporâneo reforça essa tendência. A partir do processo de instauração do
regime de acumulação integral – que caracteriza a atual fase do capitalismo –
temos um processo de intensificação da mercantilização das relações sociais (Viana,
2009). Isso gera uma hipermercantilização e os efeitos disso na cultura e
universo psíquico dos indivíduos tende, igualmente, a se intensificar. A
irracionalidade do modo de produção capitalista se generaliza e a destruição
ambiental é um de seus resultados, e, mesmo assim, o processo se reproduz. O
capitalismo é um produtor não só de ilusões mas também de irracionalidade. A
reprodução do capitalismo significa reprodução ampliada do capital e também do
mercado consumidor e nesse processo a ampliação da mercantilização é constante.
Nesse sentido, o capitalismo é a sociedade do dinheiro, fazendo com que este
seja para muitos o objetivo da vida, o valor fundamental.
Surgem até
ideologias neurológicas e outras para naturalizar a avareza e a ganância.
Assim, as representações cotidianas são reforçadas pelas ideologias e estas se
inspiram naquelas. O estudo de neurólogos sobre a área do cérebro que é
considerada “responsável” pela avareza é um exemplo de tais ideologias. Através
de uma pesquisa se descobriu que as “amígdalas cerebrais” são os elementos do
cérebro que promovem a “aversão à perda monetária”. Para chegar a tal
conclusão, os neurólogos compararam dois indivíduos com amígdalas cerebrais
danificadas com outros sem nenhum dano nessa área do cérebro e depois de alguns
testes chegaram à brilhante conclusão de que os primeiros não são portadores de
aversão à perda monetária e outros sim, o que “comprovaria” tal tese. Isso, sem
dúvida, não comprova nada e o caso é tão restrito (dois indivíduos), cuja
análise não levou em consideração a história de vida destes indivíduos, sua
formação intelectual e de valores, entre diversas outras determinações que
poderiam explicar a razao de não serem avarentos. Da mesma forma, tais
cientistas não explicaram por qual motivo pessoas sem amígdalas cerebrais
danificadas não são avarentas, ou, por qual motivo nas sociedades indígenas não
existir avareza (seria cômico afirmar que todos os indígenas possuem amígdalas
cerebrais danificadas...). Obviamente trata-se de um caso de produção
ideológica típica do determinismo cerebral, cuja característica é explicar o
comportamento humano pelo cérebro, o que é totalmente destituído de sentido (Viana,
2011). No entanto, há o status e a
credibilidade dos cientistas e das ciências naturais, incluindo a neurologia.
Assim, o
dinheiro se torna um valor fundamental numa sociedade em que ele é uma
necessidade, um meio de troca universal, e, mais que isso, se torna o elemento
básico da competição social, e por isso a sociabilidade capitalista e a
mentalidade burguesa dominante torna os indivíduos tendentes a supervalorar o
dinheiro (e quem desvalora o dinheiro é considerado “louco”). As raízes de todo
esse processo é social e remete ao estudo do capitalismo e não do cérebro
humano, tal como nas nebulosas ideologias do determinismo cerebral.
O círculo
vicioso e destrutivo do capitalismo continua, mas poucos fazem alguma coisa
para mudar esta situação, já que “essas pessoas vivem todas correndo atrás de
muito dinheiro”.
Referências
ALBERONI, Francesco. O Erotismo. Fantasias
e Realidade do Amor e da Sedução. Rio de Janeiro, Círculo do Livro, 1988.
FROMM, E. Ter Ou Ser? 4a Edição, Rio de Janeiro,
Zahar, 1987.
MARX, Karl. O Capital.
Vol. 1. 3ª Edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral.
São Paulo, Idéias e Letras, 2009.
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna.
Brasília, Thesaurus, 2007.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital.
Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.
VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia.
Uma Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí, Paco, 2011.
WRIGHT MILLS, C. Poder e Política.
Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
MARTINO, B.; CAMERER, C. e ADOLPHS, R. “Amygdala
damage eliminates monetary loss aversion”. PNAS, vol. 107, num. 08, Fevereiro
de 2010. Disponível em: www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.0910230107 Acessado em25/10/2012.