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terça-feira, 14 de outubro de 2014

O Dinheiro como Valor Fundamental - Nildo Viana

O Dinheiro como Valor Fundamental

Nildo Viana*

Na sociedade capitalista, o dinheiro, para muitas pessoas, torna-se um valor fundamental. Todo indivíduo possui uma escala de valores, alguns são mais importantes e por isso constituem valores fundamentais (Viana, 2007). O dinheiro como valor fundamental significa que está acima de outros valores (caso ele seja o único valor fundamental, estará acima da saúde, amor, amizade, poder, desenvolvimento de potencialidades, solidariedade, etc.). Os valores fundamentais dos indivíduos, por sua vez, constituem motivações poderosas das ações individuais. Os valores são mobilizadores e isso é ainda mais forte e verdadeiro no caso dos valores fundamentais. Os valores, no entanto, são constituídos socialmente e, por conseguinte, é preciso compreender a sociedade para compreender determinados valores e como alguns deles se tornam dominantes na totalidade da vida social ou fundamentais para determinados indivíduos. O nosso objetivo aqui é analisar como o dinheiro pode ser supervalorado e se tornar, para algumas pessoas, um valor fundamental e as consequências disto.

A sociedade capitalista é uma “sociedade do dinheiro”. O dinheiro nasceu antes do capitalismo, mas é graças ao modo de produção capitalista que se torna um elemento fundamental da sociedade, tornando-se “meio de troca universal”, o “equivalente geral” pelo qual toda e qualquer mercadoria pode ser trocada, como já dizia Marx (1988). Desde as mercadorias mais necessárias, tal como os alimentos, até as mais supérfluas, tais como enfeites de geladeira, todas são compradas por intermédio do dinheiro. A mercantilização das relações sociais, produto do desenvolvimento capitalista, se amplia e intensifica cada vez mais (Viana, 2008) e, no capitalismo neoliberal, sob o regime de acumulação integral, temos um processo de hipermercantilização (Viana, 2009), no qual a mercantilização se intensifica, principalmente da cultura e tecnologia, além de novas estratégias para intensificar o consumo individual e criação de nichos de mercado.

Isso tende a gerar o fetichismo do dinheiro. Ele parece adquirir vida própria, ter um processo de desenvolvimento independente, gerar mais dinheiro (essa é a ilusão da poupança e daqueles que acham que dinheiro gera dinheiro por si próprio). O que muitos esquecem é que o dinheiro é um equivalente geral acaba valendo não por seu valor de uso e nem pelo seu valor de troca (que é artificialmente criado, pois uma nota de 100 reais possui o mesmo quantum de trabalho socialmente necessário que uma nota de um real) e sim pela medida de valor que ele expressa e este é trabalho materializado. Assim, não é apenas “fictício”, como alguns pensam de forma ingênua, e sim bastante real, tanto é que com ele é possível comprar uma fábrica e produzir mais-valor explorando operários. Assim, dinheiro traz capacidade de consumo, de aquisição de bens (de consumo e de produção), poder, etc.

A mentalidade burguesa, reprodutora da sociabilidade capitalista – caracterizada pela competição, burocratização e mercantilização (Viana, 2008) – acaba  tornando o dinheiro um valor fundamental, estando, inclusive, para algumas pessoas, acima da vida dos demais seres humanos, tanto é que matam por ele. Obviamente que o dinheiro é uma necessidade para quem vive no capitalismo, pois sem ele não poderá satisfazer suas necessidades básicas (comer, habitar, etc.). Porém, a grande maioria da população não se contenta com o dinheiro apenas para isso, ele tem o papel de medir o grau de poder da pessoa, o seu status social, etc. Ele está envolvido na competição social, que produz uma “personalidade competidora” (Wright Mills, 1970) e onde o ter passa a ser mais importante do que o ser (Fromm, 1987) e isso mostra a pobreza do ser, pois só vem valor por ter. Isso, com a mercantilização das relações sociais, se espalha pela sociedade, influenciando o conjunto das relações sociais, tal como demonstra Alberoni no caso do erotismo feminino (Alberoni, 1988), que revela como de forma não-consciente a atração sexual é determinada pelos valores dominantes.

Existem muitos tipos de pessoas para as quais o dinheiro é um valor fundamental. O caso mais visível e conhecido, bem como retratado pela literatura e outras formas de arte, é o avarento. Desde Esopo, ainda na sociedade escravista antiga, essa figura já aparecia. Ele mostra um elemento comum no avarento, que é guardar para não gastar e assim valorar o que nunca irá usar, gerando um comportamento irracional. Na obra de Esopo, o avarento enterra seu ouro e assim o mantém por muito tempo. Depois ele é roubado. Um andarilho passa pelo local e ao ver seu lamento busca entender o que ocorria e questiona o avarento, perguntando por qual motivo não guardou em um lugar mais seguro, tal como sua casa, e o avarento responde dizendo que jamais usaria o ouro. O andarilho joga uma pedra no buraco e diz que então poderia ser substituído por ela. Aqui se tem um processo no qual o ouro (ou o dinheiro) é tão valorado e passa a ser um valor em si mesmo que perde até sua utilidade. O dinheiro vale por si mesmo e isso mostra a maior irracionalidade possível, pois ao contrário de outros objetos, o dinheiro (seja ouro ou papel moeda) não foi criado (ou usado) para ser um fim em si mesmo e sim um meio, um meio de troca, que serve para adquirir outras coisas. Se ele é guardado e não usado, então não exerce o seu único papel, pois a não ser em casos de colecionadores que querem guardar o mesmo motivado por outros valores, isso não tem o menor sentido, sendo algo irracional.

O AVARENTO
ESOPO

Um avarento tinha enterrado seu pote de ouro num lugar secreto do seu jardim. E todos os dias, antes de ir dormir, ele ia até o ponto, desenterrava o pote e contava cada moeda de ouro para ver se estava tudo lá. Ele fez tantas viagens ao local que um Ladrão, que já o observava há bastante tempo, curioso para saber o que o Avarento estava escondendo, veio uma noite, e sorrateiramente desenterrou o tesouro levando-o consigo.

Quando o Avarento descobriu sua grande perda, foi tomado de aflição e desespero. Ele gemia e chorava enquanto puxava seus cabelos.

Alguém que passava pelo local, ao escutar seus lamentos, quis saber o que acontecera.

“Meu ouro! Todo meu ouro!” chorava inconsolável o avarento, “alguém o roubou de mim!”

“Seu ouro! Ele estava nesse buraco? Por que você o colocou aí? Por que não o deixou num lugar seguro, como dentro de casa, onde poderia mais facilmente pegá-lo quando precisasse comprar alguma coisa?”

“Comprar!” exclamou furioso o Avarento. “Você não sabe o que diz! Ora, eu jamais usaria aquele ouro. Nunca pensei de gastar dele uma peça sequer!”

Então, o estranho pegou uma grande pedra e jogou dentro do buraco vazio.

“Se é esse o caso,” ele disse, “enterre então essa pedra. Ela terá o mesmo valor que tinha para você o tesouro que perdeu!”

Na concepção cristã medieval, a avareza é um dos sete pecados capitais. Mas é no capitalismo que o número e a intensidade – bem como o despropósito – do avarento atingem o seu grau máximo. Uma das mais conhecidas obras artísticas sobre avarentos é a peça teatral de Molière, de 1668, encenada de inúmeras formas até os dias de hoje. A mesma figura se encontra no filme O Avarento (Jean Girault, França, 1980) ou as diversas versões cinematográficas baseadas nos contos de natal de Charles Dickens, no qual o personagem avarento Ebenezer Scrooge recebe a visita de três fantasmas que o faz repensar sua vida de avareza. O avarento aparece também em outras manifestações culturais, tal como as novelas de televisão. Este é o caso da novela Amor com Amor se Paga, na qual o personagem Nuno Correia nega até comida para seus familiares devido sua avareza.

Nas revistas em quadrinhos, o personagem avarento mais famoso é o Tio Patinhas. Ele foi inspirado no personagem avarento de Dickens, e seu nome original era Scrooge McDuck, referencia direta a ele e sua primeira aparição, em 1947, em “Natal nas Montanhas” (“Christmas on Bear Mountain”).
                

A avarento é apenas um indivíduo doentio que transforma o seu desejo por dinheiro e posse material algo que pode ser sua razão de viver. A explicação disso ocorre através da análise da história de vida do indivíduo avarento, tal como se pode observar na história do personagem de Charles Dickens. Para sustentar sua avareza, o avarento pode criar racionalizações, tais como o medo paranóico de “perder tudo”.

Porém, o dinheiro como valor fundamental não gera apenas avareza (que se manifesta sob múltiplas formas e graus de intensidade, existem os muito avarentos e os avarentos moderados, aqueles que são avarentos com todo mundo ou apenas com as pessoas mais distantes, etc.). Na sociedade capitalista, há uma grande parte da população que tem o dinheiro como valor fundamental sem ser exatamente um avarento ou manifestando apenas algumas características deste e de forma moderada. Um consumista, portanto, não avarento, pode ter o dinheiro como valor fundamental, mas considerado mais como meio do que como objetivo. O avarento toma o dinheiro como objetivo, tal como no conto de Esopo ou o de Dickens. Isso difere da pessoa pobre que economiza e busca guardar suas economias, já que não é o dinheiro em si que é o valor, mas o meio de realizar coisas no futuro ou prevenir a perda e a situação de penúria (cuja possibilidade pode ou não ser realista, mas isso é uma questão que não altera o quadro).

No caso do dinheiro como valor fundamental, ela reforça a competição social e a “corrida do ouro”, tema de filmes e novelas de TV. Desde o filme “Em Busca do Ouro” (Charles Chaplin, EUA, 1925) até a novela Corrida do Ouro, da Rede Globo, de 1974/1975, em época de ditadura militar, o tema é recorrente na cultura capitalista.

CORRIDA DO OURO
CORAL SOM LIVRE

Muito dinheiro fora de hora
Sempre modifica as pessoas
Muito dinheiro
Quando chega ninguém espera
Modifica todas as coisas

Muito dinheiro
Quando pinta na vida
Modifica tudo na vida

Mas as pessoas vivem todas
Correndo atrás
De muito dinheiro

Muito dinheiro fora de hora
Dá um revertério na cuca

Muito dinheiro
Prá quem não sabe
O que é dinheiro
Põe toda a moçada maluca

Muito dinheiro no bolso
E no banco
É pior do que pouco dinheiro

Mas as pessoas vivem todas
Correndo atrás
De muito dinheiro

Quem corre atrás do tesouro
Da mina de ouro
Tem conta secreta
No banco suíço
Se esquece que a vida
Existe só prá ser vivida

Quem pensa que a grana
Que pinta de graça
Resolve os problemas
Do amor e da vida
Perdeu a sua chance
De ter a tal felicidade
De verdade

Muito dinheiro fora de hora
Sempre modifica as pessoas
Muito dinheiro

Quando chega ninguém espera
Modifica todas as coisas
Muito dinheiro

Quando pinta na vida
Modifica tudo na vida

Mas as pessoas vivem todas
Correndo atrás
De muito dinheiro

Essas pessoas
Correm atrás do dinheiro
Todo mundo correndo
Sempre atrás do dinheiro

Essas pessoas vivem todas correndo
Atrás de muito dinheiro

A letra da música acima aponta para uma percepção crítica da supervaloracao do dinheiro. Afinal, “Muito dinheiro/Prá quem não sabe/O que é dinheiro /Põe toda a moçada maluca”, ou seja, não saber o que é o dinheiro é não saber para o que ele serve, um mero meio de troca. Daí que “Muito dinheiro no bolso /E no banco/É pior do que pouco dinheiro”. A letra não só coloca a questão do saber sobre o dinheiro, mas também a questão da valoração do mesmo. Ao afirmar que quem “corre atrás do tesouro”, tem conta secreta, etc., se esqueceu de que a vida é “prá ser vivida”, coloca uma oposição entre necrofilia e biofilia, a morte e a vida, o mundo do dinheiro e o mundo real. A ilusão de que o dinheiro pode resolver os problemas “do amor e da vida” expressa apenas que o iludido “perdeu a sua chance/de ter a tal felicidade/de verdade”. A letra da música, por conseguinte, coloca o dinheiro como um desvalor, ou seja, como algo sem importância e de peso negativo (Viana, 2007).

A sociedade capitalista tende a produzir indivíduos que supervaloram o dinheiro e seu grau máximo de expressão é o avarento. Contudo, além e antes do avarento, a valoração do dinheiro a ponto de transformá-lo num valor fundamental é algo mais comum e profundo. Isso tem a ver com as necessidades impostas pelo capitalismo, mas também com a cultura da sociedade capitalista e com o processo social de formação dos valores. O dinheiro é um valor fundamental para muitas pessoas não avarentas. A figura do avarento é apenas um exagero do que é bastante comum na sociedade moderna e, ao mesmo tempo, um revelador da irracionalidade presente num dos principais valores dominantes atuais.

O capitailsmo contemporâneo reforça essa tendência. A partir do processo de instauração do regime de acumulação integral – que caracteriza a atual fase do capitalismo – temos um processo de intensificação da mercantilização das relações sociais (Viana, 2009). Isso gera uma hipermercantilização e os efeitos disso na cultura e universo psíquico dos indivíduos tende, igualmente, a se intensificar. A irracionalidade do modo de produção capitalista se generaliza e a destruição ambiental é um de seus resultados, e, mesmo assim, o processo se reproduz. O capitalismo é um produtor não só de ilusões mas também de irracionalidade. A reprodução do capitalismo significa reprodução ampliada do capital e também do mercado consumidor e nesse processo a ampliação da mercantilização é constante. Nesse sentido, o capitalismo é a sociedade do dinheiro, fazendo com que este seja para muitos o objetivo da vida, o valor fundamental.

Surgem até ideologias neurológicas e outras para naturalizar a avareza e a ganância. Assim, as representações cotidianas são reforçadas pelas ideologias e estas se inspiram naquelas. O estudo de neurólogos sobre a área do cérebro que é considerada “responsável” pela avareza é um exemplo de tais ideologias. Através de uma pesquisa se descobriu que as “amígdalas cerebrais” são os elementos do cérebro que promovem a “aversão à perda monetária”. Para chegar a tal conclusão, os neurólogos compararam dois indivíduos com amígdalas cerebrais danificadas com outros sem nenhum dano nessa área do cérebro e depois de alguns testes chegaram à brilhante conclusão de que os primeiros não são portadores de aversão à perda monetária e outros sim, o que “comprovaria” tal tese. Isso, sem dúvida, não comprova nada e o caso é tão restrito (dois indivíduos), cuja análise não levou em consideração a história de vida destes indivíduos, sua formação intelectual e de valores, entre diversas outras determinações que poderiam explicar a razao de não serem avarentos. Da mesma forma, tais cientistas não explicaram por qual motivo pessoas sem amígdalas cerebrais danificadas não são avarentas, ou, por qual motivo nas sociedades indígenas não existir avareza (seria cômico afirmar que todos os indígenas possuem amígdalas cerebrais danificadas...). Obviamente trata-se de um caso de produção ideológica típica do determinismo cerebral, cuja característica é explicar o comportamento humano pelo cérebro, o que é totalmente destituído de sentido (Viana, 2011). No entanto, há o status e a credibilidade dos cientistas e das ciências naturais, incluindo a neurologia.

Assim, o dinheiro se torna um valor fundamental numa sociedade em que ele é uma necessidade, um meio de troca universal, e, mais que isso, se torna o elemento básico da competição social, e por isso a sociabilidade capitalista e a mentalidade burguesa dominante torna os indivíduos tendentes a supervalorar o dinheiro (e quem desvalora o dinheiro é considerado “louco”). As raízes de todo esse processo é social e remete ao estudo do capitalismo e não do cérebro humano, tal como nas nebulosas ideologias do determinismo cerebral.

O círculo vicioso e destrutivo do capitalismo continua, mas poucos fazem alguma coisa para mudar esta situação, já que “essas pessoas vivem todas correndo atrás de muito dinheiro”.

Referências

ALBERONI, Francesco. O Erotismo. Fantasias e Realidade do Amor e da Sedução. Rio de Janeiro, Círculo do Livro, 1988.
FROMM, E. Ter Ou Ser? 4a Edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1987.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª Edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.
VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí, Paco, 2011.
WRIGHT MILLS, C. Poder e Política. Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
MARTINO, B.; CAMERER, C. e ADOLPHS, R. “Amygdala damage eliminates monetary loss aversion”. PNAS, vol. 107, num. 08, Fevereiro de 2010. Disponível em: www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.0910230107 Acessado em25/10/2012.




* Sociólogo e Filósofo.

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